Para entender o Brasil, é preciso entender a fé
Na minha palestra do Compol Brasil no Espírito Santo, em outubro deste ano, provoquei o público com a seguinte frase: “Se a comunicação política não entende a fé, como pode entender o Brasil?”
Para embasar a provocação, mostrei os números do IBGE do Censo 2022, ressaltando o crescimento avassalador dos evangélicos nas décadas passadas, embora tenha havido uma desaceleração na última - entre 2010 e 2022.
Esse fenômeno acaba de ser mais uma vez confirmado no livro “Brasil no Espelho”, do cientista político Felipe Nunes. Segundo o líder da Quaest, em pesquisa de 2023, 51% dos brasileiros com 16 anos ou mais declararam-se católicos e 31% evangélicos, enquanto 14% disseram não ter religião. No Censo de 2022, que optou pelo recorte de pessoas com 10 anos ou mais, os resultados foram, respectivamente, 56,7%, 26,9% e 9,3%.
Para se ter ideia do tamanho dessa transformação, em 1872 o país era 100% católico. Em 2000, 70% ainda diziam professar a fé liderada pelo Papa. Hoje, estudiosos apostam em uma transição religiosa, com prevalência evangélica, em pouco mais de 20 anos.
Independentemente da escolha — ou não escolha — da fé, Felipe Nunes observa que 91% dos brasileiros entrevistados afirmam acreditar em Deus. Ele está "acima de tudo", portanto, com ou sem o uso do famoso slogan político.
Diante desse balanço, não restam dúvidas: quem trabalha com ciência e marketing político precisa olhar com mais critério para o ambiente religioso, pois o comportamento do brasileiro é, essencialmente, pautado por sua crença.
Mas o “buraco” é mais embaixo
O cenário é mais complexo do que a dimensão numérica. Nos últimos 50 anos, a vertente religiosa que mais se multiplicou foi a pentecostal, disseminando-se pelas periferias e influenciando a perspectiva de milhões de cidadãos.
Felipe Nunes destaca a formação de uma espécie de "cinturão evangélico" urbano, onde a igreja desempenha um papel que cria vínculos quase indissociáveis. Ela oferece cura e conversão com resultados reais: recupera a vida familiar, resgata o cidadão do vício e promove ascensão social.
É um sentimento de gratidão permanente, sob a poderosa sensação de que uma fogueira interna queimou para espantar as trevas. No pentecostalismo, a relação com o divino é mais emocional, marcada por cultos vibrantes e expressões de êxtase espiritual.
Essa conexão emocional transborda para a música gospel moderna, o segundo estilo mais ouvido no Brasil hoje. Influenciada pelo movimento revival, ela evoca obediência e distanciamento do pecado com uma linguagem pop e espontânea. Como canta Eli Soares: “Já não quero mais viver pra mim; vou mandar embora o que não é Seu”.
Essa popularidade é intrínseca ao pentecostalismo desde o seu nascimento. Fundamenta-se na capacidade de falar aos socialmente excluídos com simplicidade e de reduzir os impactos da desigualdade em contextos de violência e ausência do Estado.
A conexão com a direita
Apesar de o parágrafo anterior ressaltar uma luta inerente à esquerda política (redução da desigualdade), foi a direita que capitalizou nos últimos anos esses novos rumos da fé brasileira.
Principalmente dentro do universo chamado “neopentecostalismo”. O termo (com o prefixo neo) é refutado por muitos especialistas em religião, mas marca a linhagem que chegou ao Brasil na segunda metade do século 20, representada, principalmente, pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd).
O que sintetiza esse recorte da história protestante é a chamada “teoria da prosperidade”, cuja premissa recompensa materialmente a conversão e a escolha pela missão divina. Se trata de uma visão empreendedora que incentiva o esforço individual e seleciona, a partir dessa visão, quem terá salvação na terra e no céu.
Essa característica de valorização do trabalho individual, como é apontada no livro “Brasil no Espelho”, é o que faz o brasileiro torcer o nariz para políticas de distribuição de renda e cotas.
O Brasil é um dos 15 países mais desiguais do mundo, mas ainda assim prevalece na sociedade o individualismo e a descrença em soluções coletivas - 74%, escreve Felipe Nunes, “acreditam que só podem contar consigo mesmas e com mais ninguém para conquistar o que desejam”.
Em suma, ignorar a gramática da fé na comunicação política é esquivar-se de um diálogo com a maioria da população. O avanço do pensamento conservador-liberal no Brasil não se deu por acaso; foi potencializado pela credulidade no divino e no esforço individual, bem como na ausência da oposição nesta matéria. É preciso entender que a divergência clássica entre direita e esquerda está, mais do que nunca, obrigatoriamente presente no campo da religião.
Leia também sobre o assunto aqui: Como dialogar com evangélicos sem instrumentalizar a fé.