O poder do frame: a lição de Zohran Mamdani para a esquerda brasileira

No complexo tabuleiro da política contemporânea, a performance eleitoral exige a dobradinha digital e rua. É premissa, sem choro nem vela. Portanto, esse foi apenas o operacional necessário para a campanha histórica que elegeu o socialista mulçumano Zohran Mamdani, 34, como o prefeito mais jovem de Nova York desde o século 19. Já aprofundaremos.

Mamdani, em 4 de novembro de 2025, venceu com 50,4% dos votos, superando o ex-governador de NY Andrew Cuomo (41,6%) e o republicano Curtis Sliwa (7,1%). O episódio foi um derrota política retumbante para o presidente norte-americano, Donald Trump, numa eleição que mobilizou mais de dois milhões de eleitores - desde 1969 esses números não eram alcançados.

O que causou toda essa transformação? Certamente, vai além da habilidade digital e da simpatia de Mamdani nas ruas. É claro que essa duas características foram importantes. Hoje, o TikTok do prefeito eleito conta com 3,3 milhões de seguidores. Reforço, todavia, que isso se trata da condição básica do jogo.

Nada teria sido possível sem a construção de um frame político claro e poderoso, ancorado, no caso de Zohran, em valores democratas e progressistas. Eis a principal lição da campanha do mulçumano nascido em Uganda, na África Oriental, para o mundo e para a esquerda brasileira.

Enquanto muitas campanhas progressistas buscaram moderação em caminho ao centro nos últimos anos, ao ponto de esconder suas cores e capitais simbólicos, Mamdani provocou o oposto: fez o centro e as pessoas - aprofundando o contato com parte mais empobrecida da população - moverem-se até ele por meio da ativação de valores morais, envolvendo tanto sua base quanto eleitores "biconceituais".

A revista Piauí, em breve perfil sobre o prefeito eleito, reforçou ter existido entre os democratas a visão de que a melhor forma de se contrapor à extrema direita neste momento seria priorizar candidatos mais próximos do centro, para atrair tanto a esquerda quanto a direita moderada.

Mamdani suplantou esse ponto de vista e não venceu apesar de suas bandeiras, mas por causa delas. “Nova York não está à venda”, bradou ele, numa direção de devolver a cidade às pessoas. Prometeu congelamento de aluguéis, creches gratuitas, transporte sem custo. Despertou a esperança de que os moradores podem ter a liberdade de viver em sua própria cidade.

Batalha pela liberdade

Neste ponto reside a maestria estratégica da campanha. A "Liberdade" é um dos conceitos centrais disputados na política, como o linguista cognitivo George Lakoff analisa no clássico Don’t Think of an Elephant”.

No frame conservador, a liberdade é individual: a ausência de regulação estatal, a liberdade de mercado, a liberdade de não pagar impostos.

Zohran Mamdani, em vez de tentar argumentar tecnicamente contra esse frame, apresentou um enquadramento moral progressista tão poderoso quanto, baseado na empatia e na responsabilidade social.

Ora, não há liberdade se você gasta quase todo seu salário em aluguel. Não há liberdade se você não tem onde deixar seu filho para poder trabalhar. Não há liberdade se você não pode pagar o metrô para procurar um emprego.

Como aponta Lakoff, o acesso à saúde, à educação e a luta para reduzir a desigualdade são questões de liberdade. Ao prometer congelar aluguéis, Mamdani não estava falando de economia, mas de dignidade… e de economia.

A Armadilha

As campanhas progressistas, no Brasil e no mundo, fracassam em um ponto estratégico. Elas caem na armadilha que dá nome ao livro de Lakoff: "Não pense num elefante".

O que acontece quando eu digo para você não pensar num elefante?, questiona o autor. Você pensa, imediatamente, em um elefante. Lakoff adverte: ao debater com seu oponente usando a linguagem e os frames dele, você perde. Apenas ativa e reforça o enquadramento do adversário na mente do público.

Foi o erro de Nixon ao cravar na TV: "Eu não sou um bandido". A única imagem que restou na mente do público foi a de "bandido". Da mesma forma acontece quando a esquerda brasileira repete inadvertidamente o slogan “Deus, pátria e família” para ironizar bolsonaristas.

Política é Identidade

Pensemos. A estratégia conservadora raramente se move ao centro. Eles falam com sua base, usam os frames de sua base e ativam sua visão de mundo. Perceba a dificuldade de encaixar o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como representante desse espectro. O grande sucesso da direita nos últimos anos, em contraponto a uma esquerda sempre na defensiva, foi ostentar suas ferramentas simbólicas.

A tentativa progressista de "rasgar o verbo com os fatos" - “como assim pobre vota na direita?” - muitas vezes falha, uma vez que os fatos são ignorados se não se encaixam na moldura mental pré-existente do indivíduo.

A lição da vitória de Mamdani em Nova York é um lembrete urgente: a verdade, sozinha, não o libertará. Em vez de se mover para um "centro" mítico e pedir desculpas por suas convicções, o campo progressista precisa ter clareza de seus próprios valores, enquadrá-los com eficácia e repeti-los com convicção.

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“É você que financia essa merd@”