O desafio de comunicar sem instrumentalizar a fé

Os brasileiros presenciaram nos últimos anos uma escalada na tentativa de transformar a identidade evangélica em identidade ideológica bolsonarista, de modo tão profundo que a religião acabou por incorporar o discurso político na dinâmica regular do culto. Chegaremos lá.

Antes, é importante identificar algumas etapas que nos trouxeram a este momento, a partir de uma relação - política e religião - já longeva.

Em 1986, com a redemocratização, o membro da Assembleia de Deus Josué Sylvestre defendeu no livro "Irmão vota em irmão" a importância de os evangélicos discutirem e participarem da Constituinte.

No mesmo ano, como conta o pesquisador Paul Freston, a Congregação de Sylvestre se organizou com a pretensão de emplacar um deputado em cada estado, iniciativa que deu vida à chamada Bancada Evangélica.

Novos marcos

Já em 2010 houve a candidatura presidencial da evangélica Marina Silva. Embora não se posicionasse com essa bandeira, a ex-seringueira contemplava os interesses de muitos protestantes.

Como registra a jornalista Andrea Dip, no livro “Em Nome de Quem?”, esse momento representa também certo afastamento entre esquerda petista e evangélicos. Líderes religiosos lamentavam o fato de a ex-presidente Dilma Rousseff, candidata na ocasião, não ser como Lula, líder habilidoso em promover alianças.

As desavenças se aprofundaram durante o governo Dilma (2011-2016), principalmente após uma maior abertura das pautas em defesa da comunidade LGBTQIA+ e a famosa ação do Ministério da Educação (MEC) que lançou o material didático anti-homofobia, traduzido em fake news como kit gay pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

O ano de 2014, por sua vez, foi marcado pela primeira candidatura confessional à Presidência da República. Everaldo Dias Pereira (RJ), o pastor Everaldo, então no Partido Social Cristão (hoje incorporado pelo Podemos), teve 0,75% dos votos válidos naquela jornada, indicativo de que não basta se autodeclarar evangélico para ter o voto dos irmãos.

“Que Deus tenha misericórdia desta Nação”

É assim também que Andrea Dip abre um dos capítulos de seu livro. A frase com a qual o evangélico Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos deputados, votou pela admissibilidade do processo de impeachment da ex-presidente Dilma.

Na mesma esteira, a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE) disseminou nota oficial a favor da destituição da petista, ato que na época resultou em comemoração do pastor Silas Malafaia em seu canal do YouTube.

Discurso incorporado

Em 2018, mais um passo. O bolsonarismo tirou o véu completamente de novas formas de usar a religião para ter ganhos eleitorais. Até que a política ultrapassou o limite em 2022 para ganhar uma lógica religiosa. 

O cientista político e especialista em religião Vinícius Do Valle explica que, até 2018, os discursos e as indicações de apoio eleitoral eram feitas no culto como uma espécie de aparte. Ou seja, no final do culto havia um momento de quebra e os pastores pediam licença aos fiéis para passar as orientações políticas do ministério.

Em 2022, entretanto, boa parte dos cultos, como explica Do Valle, trouxe a discussão sem esse aparte, sem essa pausa. Em muitas ocasiões, o assunto eleitoral foi traduzido a partir do discurso religioso e a disputa política se tornou espiritual. A senadora Damares Alves (Republicanos) e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro usam como ninguém a corporalidade da entonação e a glossolalia (falar em línguas desconhecidas) nos discursos.

Essa incorporação é o auge da tentativa de transformar a identidade evangélica em identidade ideológica bolsonarista, como apontamos no início do artigo. E a instrumentalização da fé pode ter começado a gerar desgaste.

Desaceleração do crescimento dos evangélicos

Embora não seja motivo único, especialistas em religião entendem que o avanço da extrema direita na instrumentalização da fé esteja no rol dos fatores que desaceleraram o crescimento da população evangélica no Brasil.

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aliás, passou uma rasteira nos estudiosos da área. De acordo com o Censo 2022, são hoje no país 26,9% (47,4 milhões) de evangélicos, o segundo maior bloco religioso brasileiro, e 56,7% (100,2 milhões) dos que professam a fé católica. Estimava-se, todavia, que o primeiro grupo chegaria a um número maior nesta altura, caso o salto registrado anteriormente seguisse o mesmo galope. 

Para se ter ideia, os protestantes eram 6,5% em 1980 e se tornaram 21,6% dos brasileiros com 10 anos ou mais em 2010. Posto tal cenário, o Pew Research Center, no estudo “Religião na América Latina”, de 2014, calculou que os protestantes já seriam maioria no Brasil em 2030 - projeção impensável diante dos novos dados. Assim também fez José Eustáquio Diniz, demógrafo e funcionário de carreira do IBGE que projetava a mudança para 2032 - e agora acredita que os evangélicos serão maioria em 2049.

Como comunicar sem instrumentalizar a fé

Contexto elucidado, eis uma constatação: hoje a política e a comunicação dificilmente conseguem entender o Brasil se não compreenderem a fé.

Trata-se de um momento complexo e desafiador, muitas vezes preconceituosamente negligenciado por figuras públicas, intelectuais e profissionais de marketing.

O caso mais gritante para explicar é, de fato, o da esquerda, que prefere tratar todos os evangélicos como fanáticos manipuláveis a compreender suas dores.

Em 2017, para a mesma Andrea Dip, o deputado Guilherme Boulos (Psol) analisou ser incompatível “fazer um diálogo com a periferia sem compreender de forma despreconceituosa o (neo) pentecostalismo”.

Com razão. Os pentecostais, maioria no Brasil entre os protestantes, são em sua maioria negros, mulheres e periféricos. A Igreja chega onde o Estado falha, recuperando fiéis das drogas, do alcoolismo e promovendo ascensão social.

Os programas sociais históricos, como apontam pesquisas recentes da Quaest, são reconhecidos, mas não empolgam tanto mais. Talvez por serem insuficientes mesmo; talvez por terem sido normalizados.

Ou ainda, concluindo a partir da obra do sociólogo Juliano Spyer, pelo fato de os pentecostais não tolerarem serem inferiorizados - algo que pode ter a ver com a teoria da prosperidade, que transforma a busca pela riqueza em missão divina.

A cansativa insistência da esquerda em externar a verdade humilhante - “você é pobre, como assim vota na direita?” - exerce efeito negativo nesse cenário. Na contramão, vem o incentivo ao empreendedorismo e à meritocracia, um caminho moralmente bem mais atrativo. Afinal, quem neste mundo gosta de ser chamado de pobre e idiota?

O presidente Lula - e isso não significa toda a esquerda - já percebeu que precisa mudar. Um trecho de sua entrevista ao rapper histórico Mano Brown e à jornalista Semayat Oliveira, no dia 19 de junho de 2025, embora não trate especificamente dos evangélicos, é revelador.

Mano Brown, em seu programa “Mano a Mano”, do streaming Spotify, ressalta “a nova mentalidade” das comunidades, “a de não depender do Estado”, o fato de “o que já foi chamado de subemprego, emprego informal, ser hoje chamado de empreendedorismo”.

Lula responde, treinado e interessado, que a esquerda não é contra o empreendedorismo. E que os MEIs, por exemplo, existem por conta do governo petista.

Para comunicar, portanto, é preciso mergulhar nesse universo, um dos mais importantes do país nestes tempos. Aproximar-se das dores cotidianas dos eleitores evangélicos e religiosos; reconhecer o papel social das igrejas nas áreas de vulnerabilidade; construir alianças com líderes além do mainstream (Malafaia não é unanimidade); unir a linguagem da fé com políticas públicas genuínas; aprender a desconstruir discursos com conhecimento; entre diversas outras ações.

Como observa Paul Freston, a igreja evangélica não exibe santos em suas paredes (a referência maior é a Bíblia), mas tem criado ídolos.

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